Tô sabendo...

CADÊ A PALAVRA QUE ESTAVA AQUI?

Cadê a palavra que estava aqui? Esta deve ter sido a pergunta feita por alunos de 7ª série de uma escola pública diante de uma atividade proposta pela professora da disciplina de Ciências. A atividade (avaliação) propunha que o aluno buscasse em uma figura representativa do aparelho digestório ...


(...) informações que completariam um texto descritivo sobre o caminho do alimento no aparelho digestório. Segundo a professora, os alunos não sabiam qual palavra colocar nos espaços vazios do texto. O que pode ter ou não ter acontecido? Os alunos estavam com preguiça? A professora não lhes apresentou o tema antes, ou os alunos não sabem ler?

Há várias habilidades cognitivas requeridas na atividade proposta: o entendimento sobre o que é e para que serve o aparelho digestório, o saber sobre qual é o caminho do alimento no aparelho digestório. Acrescente a isso, aprender palavras novas, saber ler um infográfico e identificar essas informações no infográfico.

Além disso, foi exigido do aluno, num curto espaço de tempo, outra habilidade: completar um texto descritivo com pouquíssimas palavras presentes todo o processo do alimento no aparelho digestório com as palavras que mal acabaram de conhecer!? É muita coisa!!! É como ter que dirigir um carro no trânsito no primeiro dia de aula de direção!!! Ou comer uma feijoada quando ainda se é bebê!

Pensemos:

Quando fazem juntos, professor e aluno detectam, inferem, comparam, analisam, identificam, definem e controem um conhecimento. Nesta fase, o papel do professor é propor, conduzir, orientar e reorientar quando necessário. Perfeito... até aí. Após esse processo de construção do conhecimento, é necessário reservar um tempo para a realização de uma ou várias atividades semelhantes para que o conhecimento adquirido seja, de fato, apropriado pelo aprendiz para somente então ser aplicado de diversos modos e circunstâncias. Exemplifico.


Para aprender a dirigir um carro, têm-se aulas teóricas e práticas. Nas aulas práticas, o instrutor senta-se ao lado do motorista novato, lhe apresenta a máquina e instrui que movimentos o aprendiz deve realizar para fazê-la andar. Temos um motorista? Ainda não. Ele tem o conhecimento básico sobre a máquina e de como fazê-la se movimentar, mas ainda não tem domínio sobre ela. O domínio virá se o motorista-aprendiz tiver a oportunidade de aplicar aquilo que aprendeu mais uma vez, e outra e mais outra. Mesmo assim, após dez repetições, correrá o risco, em meio a um ambiente de tensão - o trânsito -, esquecer de fazer um gesto e perder o controle da máquina. Temos um motorista? Talvez.

Pois o mesmo acontece com a aprendizagem na escola. Tem-se o instrutor-professor, o aprendiz-aluno, a máquina-conhecimento, mas não se têm as repetições que produzem a apropriação do conhecimento. Num momento de tensão - a avaliação (ou a transferência de uma informação para um texto faltando palavras) - o aprendiz-aluno perde o controle da máquina-conhecimento.
 
Apropriar-se de um conhecimento implica repetições que levam ao condicionamento ou à memorização. Guardados na memória, “na hora de ser criativo, o cérebro usa as mesmas estruturas de outras maneiras para olhar uma questão de outro jeito e descobrir um caminho alternativo” diz a neurocientista Suzana Herculano-Houzel.

No caso relatado no início deste artigo, os alunos tiveram tempo para conhecer e fazer algumas atividades referentes ao novo conhecimento – aparelho digestório - entretanto, não tiveram tempo nem oportunidade para se apropriarem dele e serem criativos na hora de preencher um texto faltando palavras.

Então, vamos baixar nossa ansiedade e oferecer aos nossos aprendizes tempo e oportunidade para que eles construam um conhecimento, identifiquem-no em outras situações e circunstâncias e repitam a experiência com a sua ajuda para tão somente depois avaliar se realmente o conhecimento foi apropriado.

Há casos em que a memorização não escraviza, liberta. Já imaginou ocupar seu cérebro pensando em como se faz para ligar o motor do carro toda vez que quiser sair de casa? Melhor seria ter essa e outras operações mentais já condicionadas e deixar o cérebro livre para apreciar o passeio.




...................................................................................................................................

O passeio de Maria fumaça e a leitura

O ato de ler exige do indivíduo habilidades intelectuais que podem ser exercitadas antes mesmo de a criança freqüentar a escola formal. Essas habilidades são as mesmas requeridas no desempenho de qualquer atividade humana, basta apenas que os pais estejam atentos às oportunidades que surgem no dia a dia para que juntos aos pequenos possam colocá-las em prática. Mas, que oportunidades e habilidades são essas?


Foto de Rogério da Luz


 Em férias, durante um passeio de Maria Fumaça, sentou-se ao nosso lado uma família que curiosamente me chamou atenção. Pai e mãe acomodaram-se, um de frente para o outro, próximos à janela. No colo da mãe, com o corpo voltado para o centro do vagão, uma criança de dois anos. Sentado ao lado do pai, próximo ao corredor, o filho mais velho de mais ou menos seis anos. Este tinha em suas mãos um joguinho eletrônico.
O passeio, que a princípio tem o objetivo de mostrar o palco da revolução de 32 em Passa Quatro, estava um tédio para os garotos. Enquanto o filho mais novo observava as nucas de outros passageiros entregues à contemplação da paisagem, o mais velho apertava os botões do game e batia os pés no banco oposto ao seu. O pai comentara que o filho preferia trocar o passeio de trem pela TV e computador do hotel em que estavam hospedados. O menino acrescentou “lá é mais legal”. A criança acreditava ser mais fascinante o mundo virtual do que o mundo real. Acreditava no virtual porque não enxergava o real.
E eu, como trouxera indevidamente nas malas a profissão de professar, convidei-o a vir até a minha janela para lhe apresentar o mundo que o virtual imitava: as colinas, o verde, as pastagens, os animais, o curso d’água que se juntava a outro e que viria a se tornar em um riacho. O menino observou o real, comparou-o com o virtual, permaneceu ali comigo - o que interpreto que deduzira: “aqui é mais legal que lá, no hotel, jogando meu game”. O menino interrompia minhas observações para comparar o que via de verdade com aquilo que imaginava ser de verdade, ou seja, expressou por meio da linguagem o que observava, comparava e deduzia.
Na prática, a oportunidade descrita acima permitiu exercitar habilidades de observação, comparação e dedução. Tais aptidões não são inatas no ser humano, logo, devem ser ensinadas. Depois de aprendidas e apreendidas, serão transferidas naturalmente para o ato de leitura como, por exemplo, observar a estrutura de um texto e sua disposição na página; comparar semelhanças e diferenças de acontecimentos; deduzir fatos, cenas, propósitos de leitura.
Além de poder ensinar habilidades específicas, a oportunidade também permitiu ampliar o universo cultural da criança que posteriormente servirá de conhecimento prévio relevante para os mais diversos objetivos de leitura e produção de textos: reconhecer a fusão de dois rios; descrever um clima; examinar distância, determinar direção. É o real vivenciado e registrado na memória facilitando a aprendizagem dos mais diversos campos do conhecimento que podem ocorrer por meio da leitura.
Tudo é tão simples, mas...
Nosso colóquio foi interrompido pelo aviso do guia turístico sobre a chegada da próxima estação. Quando retornarmos ao vagão, o menino se juntou aos pais e acomodou-se novamente no assento próximo ao corredor. Os pais continuaram a observar a paisagem, o menino voltou a brincar com o seu game e eu tive que voltar às minhas férias escolares.